A maior de todas as violações é não ouvir o grito de alerta dos jovens, de acordo com especialistas
Uma juventude encarcerada, imersa na violência que devasta vidas e dilacera famílias. É assim que Fortaleza vê hoje seus cidadãos da faixa etária de 15 a 29 anos. Presos a uma condição indigna, esses jovens viraram estatísticas. Não com agentes de índices de educação, ocupação e desenvolvimento humano positivos, mas como autores e vítimas de crimes. A juventude é hoje personagem central nos contextos de violência, seja ela representada por infrações, exploração sexual, acidentes de trânsito, homicídios, suicídios, afogamentos, entre outros.
O cerne do problema está na desigualdade social que exclui cidadãos Fotos: Waleska SantiagoNo entanto, a face mais evidente são os homicídios contra jovens, muitas vezes motivados pelo tráfico e uso de drogas. Esse tipo de violência toma conta dos bairros da Capital e tira a perspectiva de futuro dos seus moradores. Uma saída parece distante em virtude de os dados só apontarem para o lado da desesperança. A morte prematura de meninos e meninas que deveriam estar no auge da produção e da criatividade preocupa e traz à tona a reflexão de que algo está errado. Em Fortaleza, foram 337 óbitos de pessoas de 15 a 29 anos, em 2011, vítimas de causas externas.
Dessas causas, os homicídios se destacam. Em 2012, a taxa de assassinatos entre jovens foi de 40,72 por 100 mil habitantes e quase duplicou de 2007 para o ano passado. De acordo com dados do Unicef, Fortaleza ocupava a 12ª posição no ranking das capitais brasileiras sobre número de homicídios entre adolescentes, em 2008, com o índice de 2,94, o que representa 1.097 mortes, entre 12 e 18 anos. Esse dado mensura a mortalidade durante um ciclo de sete anos. Números mais atualizados de assassinatos na juventude foram negados ao Diário do Nordeste pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Pesquisas mostram que as maiores vítimas da violência são adolescentes e jovens, particularmente negros, do sexo masculino e moradores de favelas e periferias urbanas. Os óbitos ocorrem justamente naqueles lugares onde há uma superposição de violação de direitos sociais e econômicos.
Especialistas apontam a desigualdade social como o cerne do problema da violência na Capital. Fortaleza é a 5ª do País com maior diferença de renda na população. O assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), Márcio Alan Menezes Moreira, comenta que a cidade segrega, cada vez mais, classes e a juventude. Principalmente os pobres sofrem o processo de exclusão. "A política que chega ao cidadão é repressiva. Fortaleza mata muito a faixa de 15 a 29 anos". Essa é a causa mais primitiva que explica a autoria e o sofrer de práticas criminais.
Mas não é só isso. Para o assessor jurídico do Cedeca, uma reflexão que deve ser feita é sobre a precariedade de serviços sociais oferecidos em Fortaleza. "Os jovens, hoje, não têm direito à cidade, ou seja, acesso à produção cultural, daí eles se refugiam nos bairros que também não proporcionam lazer". Segundo ele, é preciso pensar em uma Capital culturalmente acessível e descentralizada.
Daí surgem os processos de violência. Os jovens geralmente estão envolvidos em dois tipos de crimes: o tráfico e os patrimoniais. Contudo, sofrem mais do que praticam. "A juventude vai sucumbindo aos desejos do consumo, sem encontrar meios de comprar e, portanto, acaba se rendendo às infrações", destaca. Moreira aponta que a ligação da extrema concentração de renda com a problemática do consumismo gera a violência.
No que se refere à prática de crimes, a solução que vem sendo pensada é a redução da maioridade penal. Para o assessor jurídico do Cedeca, o encarceramento não resolve nos adultos, então, não vai obter resultados nos jovens. "Precisamos, antes de mais nada, de uma política de redução da desigualdade".
Já o juiz titular da Primeira Vara das Execuções Penais, Luiz Bessa Neto, é a favor da redução da maioridade penal, desde que haja um diagnóstico das causas da criminalidade e um acompanhamento de perto dos casos.
O coordenador Regional da Pastoral da Juventude, Thiago Silveira, acredita que o não cumprimento da legislação vigente, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já é uma amostra de que mais uma lei ou a mudança na legislação, com a aprovação da redução da maioridade penal, não resolve o problema da violência no Brasil, que já tem a terceira maior população carcerária do mundo.
Bessa Neto vê com muita inquietude toda a disseminação do grande estuário que é a escalada de violência. "Temos visto jovens que deveriam estar no caminho da inocência, dando os primeiros passos nas drogas e no crime", observa. O juiz aponta como causas as instâncias da família e a governamental. Para ele, a primeira está desagregada dos seus valores de educar, criar e orientar seus filhos. "A família, antes, tinha três grandes missões: estabelecer o equilíbrio, a função pedagógica e repassar o ensino religioso. Hoje, ela está confinada à missão procriativa".
Já no que concerne à instância governamental, Bessa classifica as políticas aplicadas atualmente como defeituosas e sem eficácia no combate às origens da violência. "A situação momentânea é gravíssima. Temos de trabalhar as vicissitudes das causas, minimizá-las com medidas governamentais que contribuam para a redução das tensões sociais", define.
Conforme o coordenador Regional da Pastoral da Juventude, Thiago Silveira, boa parte dos jovens está em famílias desestruturadas. "Acreditando que os pais são a base fundamental de formação, não ter essa base sólida é um problema social dos mais graves", evidencia.
Estigma
Ainda há o problema do estigma. A juventude é, comumente, vítima de preconceitos, o que a impede de ingressar no mercado de trabalho ou fazer parte de grupos sociais.
A professora do Departamento de Fundamentos de Educação da FA7, Kelma Matos, considera que a maior violência de todas seja não ouvir os jovens, "matá-los ainda vivos", como se diz. "Muito do que acontece tem sua razão na compreensão de que neles há mais violência do que coisas positivas. É preciso divulgar, sim, o que esses meninos estão fazendo de produtivo, as experiências restauradoras".
A implementação da cultura de paz nas escolas traz uma nova esperança. "Os jovens precisam ser tratados como sujeitos", lembra Kelma.
No âmbito governamental, é possível apontar boas experiências. Propostas vêm sendo instaladas em Fortaleza pela recém-instalada Secretaria Municipal de Segurança Cidadã. Uma delas, um programa de mediação de conflitos. "Serão criados núcleos nas escolas onde meninos receberão capacitação para atuar nas comunidades como mediadores", conta o diretor da Guarda Municipal de Fortaleza, major Plauto de Lima.
Já a Coordenadoria da Juventude de Fortaleza está desenhando projetos para jovens em conflito com a lei e para os de grupos vulneráveis. "Vamos trabalhar na perspectiva da música, da gastronomia e da moda por meio de cursos de qualificação a fim de melhorar os capitais intelectual, cultural e econômico deles. Estamos preocupados em atender a juventude para que os processos que ela participa não a leve à violência", argumenta o gestor da Coordenadoria, Élcio Batista.
Para além da desesperança, a fé ainda permeia caminhos juvenis
Há desesperança no olhar, mas, ao mesmo tempo, ainda resta uma pontinha de fé. O jovem F.J.D.F, de 16 anos, quer voltar a ter uma "vida normal". Apesar de ser ameaçado de morte pelo tráfico de drogas, ele aguarda que "tudo" se resolva um dia. "Queria estudar, fazer faculdade, aula de computação e depois me mudar", revela, com o semblante apreensivo.
O jovem de 16 anos, ameaçado de morte, uma vítima da violência, espera voltar a estudarTudo começou quando o menino, aos 14 anos, passou a vender drogas. "Trabalhava para uma mulher e depois ´um cara´ cresceu os olhos e quis que eu vendesse para ele, mas eu não fui". Largou os estudos. "Só pensava em andar no meio ´deles´", diz. Uma espécie de herança do irmão que morreu assassinado. Para fugir da situação, F.J.D.F foi morar na casa de parentes. "Uma amiga da minha tia me levou ao conselho tutelar e depois fui para um abrigo".
E, assim, incontáveis casos como o de F.J.D.F vão acontecendo em Fortaleza, sem indícios de solução. A saída emergencial é o acolhimento em abrigos, mas que deve servir apenas como uma medida paliativa. É preciso construir a autonomia e um projeto de vida para esses meninos, como pontua Cláudia Lima, gerente de unidades da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Fortaleza (SCDH). "A permanência no acolhimento é de até dois anos, porém, muitas vezes, os jovens não têm perspectiva nesse prazo e acabam ficando mais do que deveriam", comenta.
A equipe da SCDH trabalha a aproximação com a família. "É necessário reconstruir a vida desses meninos. Até a inserção na escola precisa ser cuidadosa para evitar a evasão", revela.
O problema dos ameaçados em Fortaleza deve receber, em breve, um refresco. Está em fase de implantação o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM). Serão 25 vagas. "Falta só a questão burocrática", afirma a gerente. Hoje, a Capital conta com 24 abrigos para todos os perfis e cinco conveniados.
Bom Jardim
Famílias são vítimas da dor de perder seus filhos tão prematuramente e, com frequência, sem punição e justiça. Casos sem solução são comuns no Grande Bom Jardim, região que possui cinco dos dez bairros mais violentos de Fortaleza.
"Jamais esquecerei da minha filha". As palavras da costureira Isabel Lima Cruz, com os olhos cheios d´água, são capazes de mostrar o sofrimento de mães que perderam seus filhos sem explicação e sem dó. "Estava em casa lavando roupa quando recebi a notícia de que minha menina, de 13 anos, estava morta. O desespero tomou conta de mim. Não sei como aconteceu e nem quem foi. Entrego nas mãos de Deus. Todos os dias sonho com ela", narra.
Na tentativa de reverter o quadro de violência do Grande Bom Jardim, movimentos de Organizações Não-Governamentais e instituições entram em cena. A Terra dos Homens trabalha em defesa da criança e do adolescente em um projeto regional de justiça juvenil, no eixo da prevenção. São práticas restaurativas na reparação dos danos. Cerca de 53 instituições atuam no Grande Bom Jardim. Neste ano, já foi montado um calendário de ações no combate à violência.
"Uma das formas é trabalhar o protagonismo juvenil. Precisamos de mais equipamentos de lazer e acesso a serviços, além de fortalecer as políticas", cita Joyce Silvério, assistente técnica do Terra dos Homens.
A mobilização no Grande Bom Jardim é antiga, remonta a 1994, com a efeverscência das comunidades eclesiais de base. No entanto, faltam esforços governamentais para garantir o básico. "Vivemos sem saneamento", denuncia o técnico de Direitos Humanos do Instituto Hebert de Souza, Caio Feitosa.
Para ele, o problema é o olhar de estigma lançado sobre o Bom Jardim. "Tivemos ´booms´ de violência no Pirambu, no Lagamar e que hoje se instalou no bairro. Esse olhar corresponde também à aplicação de políticas públicas e atuação das polícias", discorre. Caio acrescenta que foi construído no bairro o imaginário de exclusão e que a implantação do território da paz, ao contrário do esperado, acabou ampliando o estigma de local violento.
Na contramão, o Pirambu conseguiu deixar o posto de bairro mais violento de Fortaleza, fruto da mobilização ativa dos movimentos sociais. "É uma das poucas localidades da Capital que possui uma federação que congrega os bairros, formando uma rede de proteção em diversas áreas", comenta o morador e coordenador do projeto Viva o Pirambu, Edmar de Oliveira Júnior. São escolinhas de surfe, capoeira, esportes náuticos, artesanato e pequenos empreendedores que levantaram o bairro. "As pessoas começaram a se apropriar do Pirambu e hoje temos reduções significativas das estatísticas de violência e elevação do índice de desenvolvimento humano e do alfabetismo. Tudo aconteceu de maneira paulatina. A própria comunidade atuou na mediação de conflitos", diz.
A revitalização veio também em virtude do Projeto Vila do Mar, que recuperou a orla do bairro, a antiga Avenida Costa Oeste, englobando a Barra do Ceará, Goiabeiras e Cristo Redentor, além do Pirambu. "Uma série de projetos aconteceram, o que a gente acredita que tenham resultado no território da paz", aponta Edmar Júnior.
Morador do Pirambu há mais de 70 anos, José Maria Tabosa destaca que o trabalho no bairro foi de "formiguinha". "Fomos de casa em casa conversar com as famílias e entender porque o jovem foi abandonado. Assim, passamos a ter o respeito das pessoas". Isso vem desde 1958. A violência, para ele, é uma questão social de não repartição dos bens de consumo. "Não tem muito segredo. Se faltam saúde, lazer, educação e cultura, isso é violência. É a má gestão administrativa. Precisaremos de mais 50 anos para alcançarmos a democracia plena", reflete.
Problemas
337 jovens morreram, em Fortaleza, vítimas de causas externas (homicídios, acidentes de trânsito, atropelamentos, suicídios e afogamentos), em 2011
40,7 por 100 mil habitantes era a taxa de assassinatos entre jovens (maior causa de mortes), em 2012, índice que quase duplicou de 2007 para o ano passado, em Fortaleza
12ª é a posição que Fortaleza ocupava no ranking das capitais brasileiras sobre número de homicídios entre adolescentes, em 2008, com o índice de 2,94 ou 1.097 mortes
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Criminalidade tem origem no déficit social
Geovani Jacó de Freitas
Professor da Uece e pesquisador do Covio
A noção de violência e criminalidade associada à juventude é relativamente nova no Brasil e, em especial, na Cidade de Fortaleza. É resultado da emergência do fenômeno da violência urbana como problema social relevante. Se até os anos 1980, embora as maiores cidades brasileiras estivessem associadas a práticas de delinquência e violência, isto não constituía padrão aplicável às demais cidades do País. A violência urbana, como fato e como representação, tem suas origens no déficit social gerado pelo Estado brasileiro em dar respostas às demandas sociais advindas do crescimento urbano descontrolado e das desigualdades sociais crescentes tanto na cidade quanto no campo.
Causas estruturais da violência associam-se a um cotidiano marcado por lutas por sobrevivência. Os jovens, marcados por diferentes inserções na sociedade, são afetados, em sua maioria, pela ausência de oportunidades de afirmação e reconhecimento sociais, promovidos tanto pelo Estado, por meio de políticas públicas, e pela sociedade, ao restringir acesso universal às iniciativas privadas de reprodução da vida em geral. Os jovens são tendencialmente enquadrados como grupo socialmente instável devido à sua condição paradoxal de estar no centro das atenções e, ao mesmo tempo, estar à margem dos padrões considerados ´normais´ da vida social. Esta condição paradoxal contribui tanto para tornar este grupo vulnerável em ser reconhecido como sujeitos de direitos, como, por isto mesmo, passa a ser considerados como problema social. Esta condição torna-se fonte perene de conflitos.
Se for verdade que as sociabilidades violentas marcam a vida cotidiana no País, hoje, e resultam de uma crise civilizatória que se arrasta ao longo da história brasileira, também é certo que a violência urbana tem como segmento social preferencial jovens situados entre 14 e 29 anos, tanto na condição de agressores quanto de vítimas, justamente devido ao vazio de políticas efetivamente públicas que assegurassem oportunidades nunca tidas de construção do pertencimento social da juventude com fundamentado no ideal positivado de futuro. Esta condição nunca fora vislumbrada como tarefa do Estado e da sociedade brasileiros.
Hoje é possível observamos, diante das estatísticas censitárias, a existência de um vazio demográfico referente à faixa etária classificatória da juventude decorrente de mortes consideradas violentas, como homicídios e latrocínios. Interessante observar que a incapacidade que sucessivos governos e a própria sociedade tem em dar respostas a este problema social grave da violência urbana tal qual ela se nos apresenta e a percebemos, os jovens passam a ser eleitos como ´classe perigosa´, assumindo o lugar não mais de vítimas preferenciais, mas de responsáveis diretos pela violência.
Objetivamente, tem aumentado a participação de jovens em práticas criminosas. Entretanto, são estes mesmos que tem sido as maiores vítimas do fenômeno da violência. Preocupante é o fato de, caso o Estado brasileiro não olhe de frente o problema, a tendência de aumento do número de crimes, atestada pelos indicadores do número de homicídios, só se elevará, como o que está acontecendo em Fortaleza e demais cidades antes fora deste lamentável ranking. A questão é: como os governos têm contribuído para a construção da visão futuro das juventudes em geral e daqueles segmentos juvenis expostos às situações limites? Hoje, a lógica privada do crime organizado não tomado como um grave problema social revela que o Estado não mata os jovens, mas os "deixa morrer".
LINA MOSCOSO
REPÓRTER
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